Programação Senciente

Um estudo em Inteligência Artificial

"The Matrix"

"Neo : Mas vocês são programas !!! "

"Ramakandra : Ah, sim. Eu sou o gerente da usina de energia para operações de reciclagem. Minha esposa é uma programadora de softwares interativos. Ela é muito criativa. "

(Senciente : do Latim sentiente; adj. 2 gén; que sente; que tem sensações; sensível)

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I - Introdução

Em 1947, Alan Mathison Turing, matemático, estudioso de Lógica e um pioneiro da computação moderna, apresentou em Londres o que é considerada por muitos a primeira palestra sobre inteligência artificial, na qual dizia: “O que nós queremos é uma máquina que possa aprender a partir da experiência”, e que “a possibilidade de permitir que a máquina altere suas próprias instruções prove o mecanismo para isso”. Doze anos antes, em 1936, ele já havia apresentado as bases para um dispositivo computacional hipotético, que ficou conhecido como “a máquina de Turing”, concebido para a detecção de proposições lógicas sobre as quais não se possa definir como “falso ou verdadeiro”, dentro de um sistema axiomático formal.

A expressão “inteligência artificial” é citada pela Enciclopédia Britânica como “o termo freqüentemente aplicado ao desenvolvimento de sistemas dotados dos processos intelectuais característicos dos humanos, como a habilidade de raciocinar, descobrir significados, generalizar ou aprender a partir de experiências passadas”. Ainda segundo a mesma, os “psicólogos geralmente não caracterizam a inteligência humana por somente um aspecto, mas pela combinação de diversas habilidades. As pesquisas em I.A. tem focado, principalmente, nos seguintes componentes da inteligência: aprendizado, raciocínio, resolução de problemas, percepção e o uso da linguagem”.

Os primeiros programas a apresentarem resultados qualificáveis como inteligentes, segundo as definições vigentes, foram codificados logo no início dos anos 50 do Século passado, como o programa de “jogo de damas” de Christopher Strachey da Universidade Oxford, executando em um Mark-I, ou o “Shopper”, de Anthony Oettinger, da Universidade Cambridge, em um computador EDSAC. O Shopper vivia em um mundo artificial constituido por um centro de compras de 8 lojas, nas quais pedia-se que o programa realizasse compras. Passeando pelas lojas, o mesmo memorizava itens que encontrava, e a cada novo pedido de compra, a mesma era executada mais rapidamente. Nos Estados Unidos, em 1952, Arthur Samuel escreveu um programa baseado no “jogo de damas” de Strachey, para execução em um IBM 701, e o melhorou com a inclusão de mecanismos de aprendizado mecânico (rote learning) e generalização, chegando ao ponto de ganhar um jogo com um campeão de damas de Connecticut.

A partir daí, diversos ramos de desenvolvimento foram estabelecidos, como a computação evolucionária ou evolutiva (“evolutionary computing”), na qual os programas “salvam” ou “ativam” cópias melhoradas (mais bem-sucedidas), de si mesmos ou seus dados, usada na resolução de problemas, bastante próxima ao algoritmo genético; as redes neurais artificiais (“artificial neural networks”) e perceptrons, simulações das redes neurais presentes nos sistemas nervosos dos seres vivos, nas quais atribuem-se “pesos” às entradas de dados (como linhas em uma tabela), de tal forma que o valor-alvo da linha seja sempre atingido para a grande maioria dos casos (conjunto de dados de entrada), usadas em previsões de novos cenários, como avaliações de crédito e detecções de fraude; os algoritmos de lógica difusa (“fuzzy logic”), apropriados para generalizações, além de um curioso processo, usado na resolução de problemas de matemática ou biologia, chamado de celular automata, na qual a solução é atingida através de pequenos passos, dados entre células vizinhas, dependentes das condições de satisfação à um número finito de variáveis atribuídas a cada uma.

Formando o corpo principal dos atuais estudos em I.A., estes algoritmos são, de fato, capazes de apresentar resultados que os qualifiquem como inteligentes, dadas as condições apropriadas, como seu uso em problemas ou situações para os quais foram desenvolvidos. De uma forma geral, cada um a seu turno apresenta-se mais como uma prova da criatividade e inteligência humanas do que modelos efetivos de suas réplicas artificiais. Atualmente, projetos internacionais e dispendiosos ainda estão em andamento, como o “Blue Brain” (“cérebro azul”), alusão à cor tradicionalmente associada à IBM (International Business Machines, Co.), uma das participantes e financiadoras do projeto, junto com a École Polytechnique Fédérale de Lausanne (Suiça), no qual 8192 processadores tentarão, juntos, simular o modelo de funcionamento chamado de coluna neocortical, teoria nova da neurologia, segundo a qual os neurônios não seriam as “unidades fundamentais” da operação cerebral, mas sim as colunas formadas por grupos deles, dispostos perpendicularmente, e formadas por 6 camadas distintas, constituindo assim, uma unidade autônoma.

Todas essas iniciativas tomam por base a idéia de que a “inteligência” é um processo final, único, mensurável, e, para a maior parte das avaliações, exclusivo da espécie humana. Talvez essa visão venha sendo, acima de todas as outras, a maior dificuldade na compreensão de sua verdadeira natureza.

Em seu livro de 1997 (“Pale Blue Dot” - Pálido Ponto Azul), o astrônomo Carl Sagan enfatiza sob diversos ângulos aquela que, mais que a inteligência, é a característica mais tipicamente humana: o egocentrismo. Historicamente, o ser humano empenha-se na distinção de sua unicidade, e uma vez que somos os únicos a nos expressarmos lingüística e logicamente (aparentemente), atribuímos a tal característica o peso de nossos desejos. Entretanto, como no livro de Carl Sagan, até hoje nossas tentativas foram sucessivamente frustradas. O mesmo pode se dar agora com a inteligência.

Estudos apresentados na revista “Current Biology”, de Washington D.C., efetuados por Erica Cartmill e Richard Byrne da Universidade St. Andrews, na Escócia, demonstram que orangotangos são capazes de se comunicar racionalmente (através de gestos), reconhecendo quais foram bem-sucedidos em sua comunicação e quais falharam. Os gestos bem-sucedidos são repetidos quando da necessidade da situação, enquanto os falhos são abandonados. Os mecanismos básicos da comunicação humana são utilizados por eles, mudando apenas o veículo de transmissão. Os cães são conhecidos por aprenderem a reconhecer (e a responder adequadamente), os rostos e cheiros familiares, reagindo agressivamente à desconhecidos. Tal distinção exige diversas das características atribuídas à inteligência. As baleias-macho repetem longas seqüências sonoras, as vêzes interrompendo-as ao meio, para retomá-las posteriormente, exatamente do ponto em que pararam. A natureza está repleta de evidências de, no mínimo, formas rudimentares de comportamento inteligente. Assim como nosso andar ereto é mais sofisticado que o de nossos parentes símios, também são nossas manifestações de comportamento inteligente.

No Século XIII, o filósofo inglês e monge Franciscano, William of Ockham (1285-1349), apresentou um princípio minimalista ou de parcimônia, com os termos "Pluralitas non est ponenda sine neccesitate" ou "pluralidade não deve ser colocada sem necessidade." Seu uso ao longo dos anos modificou seu enunciado, tornando-se no que é chamado hoje de “a navalha de Ockham”, conhecido como “se há várias explicações igualmente válidas para um facto, a mais simples é a mais provavelmente correta", que de uma forma geral, aponta para o caminho mais simples e sensato como sendo o melhor candidato à explicação de um fato. Então, qual seria o mais sensato no entendimento da inteligência? Que uma única raça desenvolveu uma habilidade inédita no mundo biológico circundante, completamente distinta e à parte dos outros, ou que a mesma é apenas um passo evolucionário adicional, somando características anatômicas aos mecanismos já existentes, aumentando seus potenciais e, conseqüentemente, seus resultados?

Por Ockham, a Programação Senciente baseia suas premissas na segunda hipótese, considerando a inteligência um resultado colateral e adicional, de nossas características físicas e nosso histórico evolucionário.

Programação senciente é uma proposta para um novo paradigma em Inteligência Artificial. Significa criar programas que, apesar de se especializarem em áreas diferentes (como Ramakandra e sua esposa, Kamala, no filme dos irmãos Wachowsky, "The matrix"), possuem aspectos funcionais que os distinguem como entidades. As especializações acontecem posteriormente, em áreas específicas, exatamente como se passa conosco, ao aprendermos uma profissão.

De maneira análoga às formas de vida biológica, programas sencientes baseiam-se numa estrutura sensorial, a qual lhes permite "saborear" o mundo ou a realidade conforme lhes é apresentada. Sobre suas aptidões sensoriais agem camadas de identificação, semiótica (significação), cognitivas, analíticas, etc. Cada camada, operando independentemente sobre as informações coletadas e processadas pela "anterior" ou "inferior", obtém conclusões mais sofisticadas, aproximando-se, a cada passo ou camada, do nível de comunicação e reações consciente.

Padrões pré-inseridos na forma de arquétipos guiam a evolução das interpretações e conclusões feitas sobre os dados sensoriais, permitindo a formação de diferentes visões ou conjuntos de reações para uma mesma realidade. Operando em conjunto com os arquétipos, uma série de variáveis psicológicas dirige as conclusões, associações e modelos comportamentais criados a partir da percepção, gerando assim entidades únicas, cada qual reagindo ao meio ambiente de forma própria e distinta.

A programação senciente postula e toma por base o conceito de que a racionalidade, assim como todas as formas consideradas como expressões de inteligência não são distintas da emocionalidade simples, como compartilhada com primatas, ou reações instintivas, mas sim evoluções das mesmas. Sob sua ótica, reações de arco-reflexo, instintivas ou emocionais são formas primitivas de inteligência, que possibilitam o lido com a realidade circundante, e constroem-se umas sobre as outras, conforme aumentam os recursos físicos para seu processamento.

Sofisticando e aperfeiçoando os modelos comportamentais utilizados para reagir ao meio-ambiente, cada acréscimo anatômico constrói novas estruturas valendo-se das anteriores. Dessa forma, a biologia, filosofia e psicologia unem-se num traçado contínuo até o mais distante ancestral cambriano que, longe de extinto, governa o mundo como o conhecemos, oculto por camadas desenvolvidas sob o julgo da seleção natural.

Longe de um mero conceito ou área de pesquisa intelectual, o desenvolvimento de entidades capazes de comportamento inteligente é hoje uma necessidade. Vivemos a Era da Informação. Quantidades enormes de dados se avolumam a cada segundo, tornando mais e mais complexos os processos de decisão. Há anos atrás, municiamos funcionários de escritório com computadores e programas que os habilitassem a lidar, de forma mais eficiente e confiável, com uma quantidade de dados impossível de ser processada manualmente. O mesmo se passou em nossas industrias, nas quais os operários passaram a supervisionar linhas robotizadas de montagem, permitindo a produção dentro de níveis e custos necessários aos dias de hoje. Seguindo a evolução natural das necessidades decorrentes de nossas atividades, encontramo-nos agora em face da automação de processos decisórios, abrangendo gerências e supervisões, abarrotadas com informações demais, sobre as quais decisões devem ser tomadas em cada vez menos tempo. Os sistemas de I.A. podem e devem vir em seu auxilio. 

 

Paulo E. Sasaki, Setembro de 2006